Memórias dos dias cruéis

O despontar do elefante com pés de barro, de Francisco do Ó Pacheco<br>– das estradas e das estrelas, <br> de José Vultos Sequeira

Domingos Lobo

A me­mória, so­bre­tudo a que per­siste e re­gista os acon­te­ci­mentos mar­cantes de um de­ter­mi­nado tempo, quando esse tempo foi cap­tu­rado pela vi­vência do autor, é a ma­téria mais fe­cunda que es­tru­tura e emerge destes dois textos e do apego à luta que ambos os au­tores vêm tra­çando na sua obra, para que essa me­mória se não apague; uni­versos de valor que en­troncam num delta que tem um rio comum: a ur­gência de contar esse tempo, essas vi­a­gens di­versas, mas so­fridas, pelos dias cruéis a que o fas­cismo su­jeitou vá­rias ge­ra­ções.

1. Fran­cisco do Ó Pa­checo, que no livro an­te­rior (Se­aras Ver­me­lhas de Abril) tra­çava de forma em­pe­nhada e ri­go­rosa o acervo da Re­forma Agrária, as lutas e os des­mandos desse pro­cesso, do que foi a mais justa e ge­ne­rosa con­quista de Abril, traz-nos neste novo livro (lan­çado em Se­tembro, na Festa do Avante!), em forma de ro­mance his­tó­rico, a saga do povo de Ci­neto/​Sines (pe­quenos pro­pri­e­tá­rios ru­rais e pes­ca­dores), contra o pro­jecto mar­ce­lista de ins­talar, na­quela que era uma das mais belas baías da costa alen­te­jana, uma re­fi­naria, um porto ter­minal oceâ­nico, e um com­plexo pe­troquí­mico como es­tru­tura com­ple­mentar da­quilo que Álvaro Cu­nhal con­si­derou ser «O erro mons­truoso de Sines con­ce­bido no quadro de in­te­resses con­jun­tu­rais do im­pe­ri­a­lismo e dos grandes grupos mo­no­po­listas (...)»

É contra este erro, e a ga­nância dos grandes in­te­resses ca­pi­ta­listas aco­li­tados por um go­verno que não olhava a meios, su­gando os parcos ha­veres, des­truindo re­fe­rên­cias an­ces­trais, modos de vida, equi­lí­brios am­bi­en­tais e a cul­tura de um povo, es­ta­be­le­cendo nesse es­paço con­di­ções para que o ca­pi­ta­lismo ra­pace ali se ins­ta­lasse, er­guendo um pa­qui­derme in­dus­trial que des­truiria toda a pai­sagem da re­gião e as formas de re­la­ci­o­na­mento entre os seus ha­bi­tantes, que o povo de Sines se irá re­voltar e re­sistir com as parcas armas que tinha ao seu dispor. So­frerá, às mãos da PIDE e da GNR, (emer­gindo na nar­ra­tiva essa fi­gura si­nistra do Fun­ci­o­nário, bufo atento ao menor mo­vi­mento das som­bras), a ou­sadia de exigir dig­ni­dade, jus­tiça e cum­pri­mento de pro­messas.

Neste o des­pontar do ele­fante com pés de barro, Fran­cisco do Ó Pa­checo traça o re­trato so­cial da sua ro­mana Ci­neto, terra de gente do mar, pes­ca­dores de fibra e de co­ragem, de Vasco da Gama, de ru­rais que têm na leira o seu qui­nhão de sonho e sus­tento, que à terra se agarram, chão onde as suas raízes se fundem até ao de­ses­pero e ao sui­cídio; as festas, as noites de dança na Es­pla­nada, onde Abel co­nhe­cerá Aliete, os tu­ristas, as águas fundas e pe­ri­gosas, esse seio fe­cundo do mar de Sines.

Uma es­crita que emerge do fac­tual, do his­tó­rico, hiper-re­a­lista, clara e flu­ente, para nos dizer da luta, da re­sis­tência, da co­ragem cí­vica das po­pu­la­ções contra o ar­bí­trio, a vi­o­lência, o terror de um re­gime cí­nico que fingia trazer flores no re­gaço para me­lhor ex­purgar e sub­meter um povo or­gu­lhoso e de­sar­mado.

2. Do poeta José Vultos Se­queira, a edi­tora Pá­gina a Pá­gina pu­blicou uma série de nar­ra­tivas com o tí­tulo das es­tradas e das es­trelas. O autor re­gressa neste livro às vi­vên­cias da ofi­cina, aos so­nhos, à du­reza da vida ope­rária numa ofi­cina, ao de­sejo de mu­dança, de luta, de ul­tra­pas­sagem de uma vida min­guada, do tra­balho duro que apenas ga­rante o parco sus­tento. Temas re­cor­rentes na obra de Vultos, já abor­dados em li­vros como Homem da Fá­brica e, num con­texto afim, em Eis o Pão. Dir-se-ia que neste novo livro, a es­crita de Vultos se tornou mais con­tida, e nesse co­me­di­mento o dis­curso se al­can­dorou mais ex­pres­sivo, mais amplo e ma­duro.

O grupo de nar­ra­tivas (al­gumas es­tru­turam-se como contos) mais con­se­guido, em termos es­ti­lís­ticos e fic­ci­o­nais, é o que se inicia com O Sol Dentro da Ofi­cina, nas quais emerge essa fi­gura se­rena e dou­tri­nária do ti Jo­a­quim, que vai en­si­nando ao jovem aprendiz os tor­tu­osos ca­mi­nhos da vida, do tra­balho, dos subtis me­an­dros da usura, abrindo-lhe mundos até aí des­co­nhe­cidos em busca da dig­ni­dade e da jus­tiça: Tu sabes que é pre­ciso pensar, pensar para com­pre­ender, é pre­ciso sermos todos seres pen­santes, seres de cons­ci­ência. E o jovem aprendiz/​nar­rador ima­gina um mundo assim, cons­ci­ente e justo, em que a ofi­cina fosse esse mi­cro­cosmos, essa ver­tigem de vida e luta e tra­balho, em que todos cou­bessem, em que todos fossem fe­lizes e em ple­ni­tude se re­a­li­zassem: E eu senti que o mundo era um grande re­fei­tório, um re­fei­tório onde toda a gente podia en­trar e sentar-se à mesa con­nosco e comer.

A po­breza e o com­pa­nhei­rismo, uma fra­ter­ni­dade chã, sem so­fismas, per­passa esta prosa, estes contos li­gados por uma ténue es­tru­tura fic­ci­onal que as­senta na me­mória viva, sen­si­tiva e atenta aos fe­nó­menos con­jun­tivos da vida e dos seus mais frá­geis ali­cerces; uma voz que vem desse mundo de mar­gens e de­sas­sos­sego e so­li­dária se ergue ao lado dos seus iguais, sem sub­ter­fú­gios nem em­bustes. Vultos sabe que o pior é um homem com fome ter medo de se er­guer e gritar. Daí o autor trazer para estas pá­ginas os seus com­pa­nheiros de ju­ven­tude, o Zeca Puto e o Picha, ca­ma­radas de greves, de ma­ni­fes­ta­ções, dos pro­dí­gios de quem viveu tempos altos e ju­bi­losos.

A prosa poé­tica de José Vultos Se­queira con­segue neste livro mo­mentos raros, sem desvio no que nela é es­sen­cial, ful­cral ob­jecto de contar essa saga dos po­bres, ha­bi­tantes de um mundo hostil que é pre­ciso domar e vencer.

Ouvia a renda da terra rente ao chão, a vida cor­te­java-se, mul­ti­pli­cava-se na in­vi­si­bi­li­dade do es­curo: as ruas abriam as suas pé­talas, as se­mentes rom­piam a sua casca e crosta partia-se, fendia.

Al­gures uma mu­lher paria.

 

O des­pontar do ele­fante com pés de barro, de Fran­cisco do Ó Pa­checo - Edi­tora Pá­gina a Pá­gina/​2017

Das es­tradas e das es­trelas, de José Vultos Se­queira – Edi­tora Pá­gina a Pá­gina/​2017

 



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